quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Palavra-pipa

imagem: Jordanna Duarte

Queria que as palavras saiessem sorrateiramente de dentro de mim, 
ganhando o dentro das retinas, pra dentro do tato, estalando; 
Saindo assim, ganhando o mais de dentro de mim, surdamente,
esculpindo picos de liberdade profunda, do mais contido de mim,
silenciosamente, movendo, no intermitente de meu pensamento, deslizando aromas,
aqueles sutis, brotados do aconchego profundo da lava mãe, que faz as aparecências do instante.
Queria que as palavras falassem antes de mim, do limite entreposto entre eu e elas,
vertentes consolidadas de vozes arredias, arrepiadas de bocas ferozmente pintadas.
Se elas saissem assim, parto normal do meu inconsciente, gestado fora do tempo, sem organização de limpezas, assepsias, remédios ortográficos, tic-tac me acordando, paralelepípedos se metendo no meu caminho, ou flor penetrada no asfalto ao sol do meio-dia,
seriam uma brotação:

dia inteiro se fazendo vida, se tornando caminhada, pés acomodados na terra-palavra, daquelas que eu posso inventar, que eu posso amassar, feito barro, feito massa, pra moldar, desmanchar,
fio de doce tecendo levezas, arrematando pontos-palavras,
zigue-zagueando, brincando criança soltando pipa
pipa-palavras saindo de dentro de mim, pintando, bordando o sol, 
carretel de palavras, saindo de dentro de mim, vindo pro dentro de mim.

sábado, 6 de novembro de 2010

Questão de magia


foto: Zé Cafonso
Feito um mágico, tiro da cartola a rosa
Feito um mágico, tiro da rosa meu alvo
Feito um mágico, brinco com a cartola
Meu coelho

Feito rosa, tiro de dentro de mim, um mágico
Feito rosa, aponto em direção ao alvo
Feito rosa, brindo a cartola
Meu pássaro

Feito pássaro bicando a rosa
Sou mágico saindo da cartola
Feito coelho pegando o alvo
Brinco dentro da cartola, uma rosa

Feito feitiço saído de dentro da rosa,
Sou pássaro usando cartola
Feito rosa desabrochando cartola,
Sou coelho brindando o mágico

Feitura, de mágico que tira da cartola, a rosa
Aventuras, a fazer mágica, com rosa
Apareço, saída de dentro da cartola, uma rosa 
E é o mágico a fazer magia com minha rosa!

Construção

flor de lótus

eu sou todos
desde os que vieram
antes
dos que permanecem
agora
daqueles que ainda não chegaram
o porvir
sou em complexa
contínua
transcendental
formação
 realidade
 pensamento
ação
 procura
de mim
incessante
navegação

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Conto

foto: Miguel
http://br.olhares.com/dancing_colours_foto3264529.html

Era um final de ano, mais ou menos nessa época, em que conto esta história. Havia uma menina, dessas, que não se acha muito, que não se esconde tanto, mas que se procura bastante. Um dia, quando tentava se descobrir em suas roupas, em suas caixas, achou de se procurar dentro da gaveta. Justo ali, onde todos mexiam, reviravam e não se importavam. Era gaveta mesmo, cheia de bagunça, o que poderia haver ali? Mas a menina teimou, hesitou e tentou... Abriu a gaveta e procurou. Não sabia ao certo o que procurava, mas procurava. E começou a encontrar muita coisa que reconhecia... Descobriu ali, dentro da gaveta, algumas faces do amor. O amor doce, vivido e realizado; o amor escondido por tanto tempo, encontrado e logo perdido.
Achou vozes que lhe ordenavam o caminho, apontavam direções. E achou melhor tirar todas dali. Elas ocupavam muito espaço, faziam muito barulho. E tirou. Ah! Descobriu medos! Quantos! Alguns ela tirou, como o medo de se expor; outros, por medo, deixou. Deixou o medo do escuro, pra ter desculpa de abraçar alguém no meio da madrugada, pra se sentir protegida e pra deixar a vida mais divertida! Tentou tirar as mágoas... Mas elas estavam tão duras lá dentro, que levou um tempão... E a menina sofreu... Sofreu porque não sabia que estava cuidando de mágoas como quem cuida de ervas daninhas, e soube que elas crescem rápido e se espalham mais rápido ainda... Enquanto tirava a bagunça de tantos sentimentos desordenados, descobriu lá no fundo alegrias esquecidas: o prazer de tomar banho de chuva, de correr, de subir em árvore e não dar conta de descer... de comer doce escondida na madrugada! De rir e rir muito... rir do nada, pro nada até ter vontade de chorar... e chorou. E descobriu que rir e chorar fazem parte da vida e que é possível ser simples e feliz (e esse era o seu maior sonho!).
Encontrou pessoas, seu grande tesouro. E sentiu-se feliz em saber que elas existem e que de alguma forma elas existem em sua vida. Algumas erram, e erram feio, em questão de segundos... que outras acertam, às vezes acertam fundo, marcam. E a menina sofreu mais uma vez. Queria que as pessoas chegassem ou partissem num balão de margaridinhas a sorrir, e que nunca, nunca partissem num balão de silêncios...