sexta-feira, 3 de junho de 2011

Bote pronto

foto: Carlos Candido
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De longe ela, inerte, me espreita, me observa, tento me refugiar, me ocultar, mas me acompanha, não precisa caminhar até mim, se arrastar, está lá inerte observando, sugando o clima, me contendo em meus caminhos, solenemente abre meus rastros no descompasso da minha vontade, mas não se move. 
De longe ela se levanta, se anuncia, me retrai. Interfere. Resolve caminhar, vem sinuosa, sentindo o friocalor do movimento, vem no passo do meu descompasso, do meu caminho, da minha rota de desvio, me acompanha. Interfere. Sinto. Não tenho medo, escuto seu desenrolar, sinto o cheiro. 
Não tenho medo. Paro. Espero. 
De frente, se enrosca, sufoca, torce, espreme a dor, sufoca mais pra ter prazer. Só sinto. No olhar se revela e tantas vezes tentou se ocultar, viver na sombra, na desfaçatez dos sentidos, impedindo, tolhindo, espreitando. Deixando viver o que queria, mas quando não quer, se enrosca mais, comprime mais. Tem um prazer no olhar, de ver a dor, de provocar mais. 
Está lá, limpando meu rastro quando quer se movimentar e só se movimentar por isso. Estaria lá, só a observar. Mas antes o cheiro, que chegou antes de acordar, não viu outro movimento porque estava ausente na sua presença, pensou que controlava só por existir, mas teve que vir, sinuosa a me limpar. Está de frente, bote pronto, mas não há o que ferir, só o que olhar. Me percebe. Só percebe de longe e bote pronto. Não sabe me tocar, não há o que ferir. Procura outro ponto, num outro, o ponto de morder, de sim, ferir, impedir, torcer. 
Assim, me provoca, me suga. Doi. Sinto. 
Rastreia sibilar meu caminho, as rotas, os refúgios. Desce sinuosa no seu assobio, se apoia pra chegar mais dentro, mais forte na dor. 
Na dor de ser um, na dor de ser dois, na dor de ser três e dor alegre de ser mais um, que entrou pra ser bom, ser bem, ser inteiro na medida da inteireza repartida, ser possível na medida dos sonhos possíveis. Afastar o pesadelo da viscosidade, da frieza, do enrosco de ser tudo ao mesmo tempo, se esquecendo de ser. 
Está lá de bote pronto, ativa, anunciando seu barulho para afugentar, colocar de lado.
Ainda me espreita. 
Sinto. 
Não tenho medo.